Juventude desafiliada: invisibilidade e rejeição travam

Livro desconstrói a idéia de que os jovens são "monstros" e nasceram aptos para o crime, como é comum observar nas abordagens dos noticiários. "É comum roubarem nas ruas para serem vistos. Alguns meninos já reportaram que é melhor ser pivete do que não ser ninguém, como uma forma de se distinguir na massa amorfa de uma cidade grande", afirma pesquisadora da UFRJ.

A defesa dos jovens que estão desprotegidos do abrigo familiar é um antigo problema social que, como muitos outros, atinge de forma mais perversa as camadas menos favorecidas da sociedade. Chamada de juventude desafiliada pelos especialistas, é freqüentemente associada à violência estrutural da sociedade – mas pouco se faz a respeito. Qual o melhor caminho para se chegar a políticas para a juventude que busquem uma efetiva reintegração deste jovem à sociedade?

Os gestores e pesquisadores que lidam com o tema ganharam uma importante obra de referência. Foi lançado no último dia 29 de agosto, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o livro "Juventude, Desafiliação e Violência" (Editora Contracapa, Faperj e UFRJ), organizado pelas pesquisadoras Ligia Costa Leite, Maria Esther Delgado Leite e Adriana Pedreira Botelho.

"Inicialmente, o melhor caminho seria termos uma escola de qualidade para todos, pois assim estes jovens estariam sendo educados para a cidadania e para o futuro de toda a sociedade", explica Ligia, uma das coordenadoras da obra e professora da Faculdade de Medicina da UFRJ.

A pesquisadora, que trabalha desde a década de 1980 com o tema, iniciou a partir de 1992 um trabalho de reabilitação psicossocial no Instituto de Psiquiatria da UFRJ, em parceria com abrigos e ONGs que atendiam estes jovens. "Os abrigos, assim como outros trabalhos com adolescentes desafiliados, são paliativos para proteger alguns jovens até os 18 anos, quando acaba a idade para proteção legal", completa.

Ligia lembra que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê três situações para que os jovens recebam medidas de proteção e a primeira razão é justamente quando têm seus direitos ameaçados "por ação ou omissão da sociedade ou do Estado" (artigo 98). "Isto quer dizer que a lei reconhece que a falta de oportunidades de estudo, lazer e convivência familiar, entre outros fatores, decorrem da ausência do Estado. Diante deste vácuo de direitos que não são cumpridos, existem os abrigos e outras instituições que procuram encaminhar esses jovens para outros caminhos, mas esses não são suficientes. Falta uma cobertura de rede que possibilite uma inserção mais ampla para um problema abrangente", argumenta Ligia.

Para a pesquisadora, os centros de saúde mental podem ajudar e possibilitar que os jovens se sintam sujeitos dentro de uma abordagem da reabilitação psicossocial, longe de caminhos repressores e de controle social usuais. "Levá-los a lidar com sua auto-estima e procurar projetos de vida longe da violência que atinge igualmente a toda população é fundamental", explica Ligia.

Violência silenciosa

Apesar de cerca de 40% da população brasileira se encontrar abaixo dos 18 anos, Ligia destaca que "os governos não têm muita preocupação em conhecer e entender a juventude desafiliada, geralmente culpando-a por suas escolhas", quando não culpam as famílias. "Muitas vezes, estas famílias já são desafiliadas desde o Império e o início da República", registra.

Desta forma, poucas são as fontes de pesquisa para esta faixa etária, assim como poucos são os profissionais formados para atender este público. "Ao tentar negar a existência deste grupo, estamos possibilitando o aumento da violência, já que muitos jovens respondem agressivamente à violência silenciosa que os atinge", explica a professora.

"Sem escolas, formação para cidadania e para o trabalho, jovens se afiliam a grupos marginais, do tráfico de drogas ou mesmo das atuais milícias [grupos de ex-policiais militares e ex-bombeiros que controlam algumas áreas no Rio de Janeiro]. Este tem sido o resultado de anos de descaso com a infância e juventude pobres", alerta. Para Ligia, se houvesse uma preocupação com o tema por parte do governo, haveria um retorno positivo para a constituição de uma Nação.

O livro está dividido em três partes. A primeira é uma análise das políticas sociais a partir da legislação atual – Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a lei da Reforma da Atenção Psiquiátrica no Brasil, com textos, entre outros do Dr. Talvane de Moraes, psiquiatra forense, do Desembargador Siro Darlan e outros capítulos que são resultado das pesquisas de organizadoras do livro e de seus alunos. A segunda parte traz os aspectos teóricos e históricos da psiquiatria. Já a terceira parte apresenta os aspectos clínicos do trabalho com crianças e adolescentes desafiliados, contando com capítulos de profissionais de São Paulo e da UERJ.

Invisibilidade e rejeição

"Os jovens gostariam de ser reconhecidos como sujeitos e, como isto não ocorre dentro das instituições que os atendem – escolha, abrigos, alguns empregos e até a rua -, eles se sentem rejeitados e reagem violentamente toda vez que não são vistos, escutados, considerados como pessoas", afirma Ligia Costa Leite.

O livro desconstrói a idéia de que os jovens são "monstros" e nasceram aptos para o crime, como é comum observar nas abordagens dos noticiários. "É comum roubarem nas ruas para serem vistos. Alguns meninos já reportaram que é melhor ser pivete do que não ser ninguém, como uma forma de se distinguir na massa amorfa de uma cidade grande", registra Ligia.

Esta é a violência maior que sofrem: a violência silenciosa das portas e janelas fechadas, da falta de diálogo, da falta de reconhecimento. Conforme registra a pesquisa, nas ruas é freqüente procurar não se olhar para os jovens que por ali buscam sobreviver. Segundo os estudos divulgados na obra, estes jovens são a ponta de um iceberg do problema social brasileiro, porque longe das ruas, nas comunidades pobres, as questões são muito mais densas e de difícil solução.

Cultura consumista e violência

Neste complexo quadro social, a cultura consumista acaba por agravar os problemas, já que estimula todos os dias entre os jovens o desejo por bens na maior parte das vezes inalcançáveis, impulsionando a violência estrutural pelo qual passa esta parcela da população.

A professora Ligia destaca que jovens de todas as classes sociais estão à mercê da cultura consumista. No entanto, apenas aqueles mais pobres ou indigentes não podem comprar o que outros compram ou consomem. "Assim, eles buscam outras formas de consumir. A droga nas ruas, os inalantes, por exemplo. Estes são mecanismos que utilizam para fugir da sensação de impotência e de não se sentirem sujeitos, mas objeto de descaso, silêncio e inexistência".

Para Ligia, é preciso que uma nova cultura seja posta em prática. "A sociedade, os homens públicos – com raras exceções – reconhecem que esses jovens precisam ser olhados, incluídos, educados para o futuro de todos".

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