Tendo amado os seus…

 Tendo amado os seus…

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Pe. Wander Torres Costa*

Com a celebração da Ceia do Senhor e o gesto do lava-pés na quinta-feira santa, somos introduzidos no Tríduo Pascal. Não se trata de viver três dias de preparação para a Páscoa, a ser celebrada no domingo, mas de inserirmo-nos no mistério da paixão, morte e ressurreição do Senhor. É o mesmo e único mistério, celebrado em seus diversos âmbitos.

Podemos afirmar que a celebração deste dia é uma celebração profundamente amorosa, realizada entre pessoas que amam e são amadas, na intimidade de uma refeição familiar, de gestos carinhosos e comprometedores. Celebrar a instituição da eucaristia e o gesto do lava-pés é como chegar à fonte de um rio, descobrindo e contemplando como tudo começou. Ao mesmo tempo, podemos também contemplar todo o rio que se formou daquela fonte de vida e serviço. Ao longo dos tempos, mulheres e homens, em diversas culturas e lugares, uma vez experimentando da água que brota daquela fonte, transformaram-se em testemunhas de um grande amor que se revela e expressa em gestos, às vezes tão radicais e profundos que aproximam de tal modo o discípulo do mestre, inclusive na entrega da própria vida.

Este ano de 2016, a quinta-feira santa acontece no dia 24 de março. Para o povo de Deus presente na caminhada da Igreja latino-americana, esta data é sempre recordada com muito carinho. Há 36 anos, no dia 24 de março de 1980, durante uma celebração eucarística, Oscar Arnulfo Romero, arcebispo de El Salvador, foi assassinado. Que bela coincidência ou talvez providência: o primeiro ano em que celebramos o martírio de Oscar Romero após ser beatificado pelo papa Francisco no dia 23 de maio do ano passado acontece em um dia tão especial como este!

A singularidade de ter sido martirizado enquanto celebrava a eucaristia, neste dia em que fazemos memória da instituição deste grande sinal de amor pode ajudar-nos ainda mais a inserirmo-nos neste mistério de paixão, doação e serviço. Assim como o gesto de Jesus ficou gravado no coração dos seus discípulos, também o martírio de Dom Romero ficou gravado no coração do povo latino-americano, especialmente de seu povo salvadorenho, gente simples, pobre, sofrida que encontrava nele um pastor conforme o Bom Pastor que “tendo amado os seus, amou-os até o fim” (Jo 13, 1). Um fim que não é até a morte no sentido cronológico, mas um fim que significa intensidade, ou seja, até o extremo, até o máximo possível de que um ser humano pode amar, com todo seu ser, sua força, seu coração.

Oscar Romero atualiza o mistério eucarístico. Aliás, faz-se mistério eucarístico. Seu corpo, seu sangue mistura-se ao corpo e sangue do Senhor na paixão em favor dos pequenos. Nele, as palavras que ouvimos no dia da ordenação sacerdotal, quando o bispo nos entrega a patena com o pão e o cálice com o vinho foram plenamente realizadas: “Recebe a oferenda do Povo santo para apresentá-la a Deus! Toma consciência do que vais fazer e põe em prática o que vais celebrar, conformando tua vida ao mistério da cruz do Senhor.”

Aqui vale também recordar as palavras do Papa Francisco na mensagem que enviou ao arcebispo de El Salvador, Dom Luiz Escobar Alas, por ocasião de sua beatificação: “Em tempos difíceis de convivência, D. Romero soube guiar, defender e proteger o seu rebanho, permanecendo fiel ao Evangelho e em comunhão com toda a Igreja. O seu ministério destacou-se pela atenção especial aos pobres e marginalizados. No momento da sua morte, enquanto celebrava o Santo Sacrifício do amor e da reconciliação, recebeu a graça de identificar-se plenamente com Aquele que deu a vida pelas suas ovelhas”.

Aquele homem, que aos poucos foi se abrindo às dores e sofrimentos de seu povo, teve realmente sua vida conformada com a Cruz de Cristo, em uma plena e profunda identificação com o seu Mestre e Senhor, cumprindo em sua vida o mandamento do Amor. De simples sacerdote, tornou-se altar e vítima. Tornou-se eucaristia. Recordemos aqui o lema do 10º Encontro Nacional da Pastoral da Juventude: “Na ciranda da vida, nossa missão é amar sem medida”. Na ciranda da vida, Oscar Romero amou sem medida.

Como afirmei anteriormente, esse gesto ficou gravado na memória do povo latino-americano e tornou-se para tantos uma motivação para continuar a luta. Permita aqui partilhar algo mais pessoal e assim, fazer memória de alguém também muito especial.

Como muitos sabem, sou padre da Arquidiocese de Mariana/MG. Fui ordenado por Dom Luciano Mendes de Almeida, em setembro de 2004. Grande graça e responsabilidade. Enquanto estava no seminário em Mariana, era comum Dom Luciano pedir algum seminarista para cobrir folga de seu motorista. Assim, no final de 2003, fui com ele a Belo Horizonte. Além das orações da liturgia das horas e do terço, também gostava de conversar e perguntar como estava a caminhada. Como sabia que estava no último ano de teologia, perguntou-se o tema do meu trabalho final. Disse a ele que meu trabalho era sobre a cristologia da libertação, na perspectiva de Jon Sobrino. Daí seguiu uma das melhores conversas que tive com ele. Em determinado momento ele disse: “Das coisas que mais me marcou na vida foi o enterro de Dom Romero. Eu fui. Não era seguro ir. Muitos bispos tinham medo de ir. Era um dos poucos bispos que estava ali. Era tudo muito tenso. O povo todo, muito medo. O corpo dele em frente à Catedral. De repente vieram as bombas. O povo se assustou. Começou uma correria. Gritos, desespero. Os tiros. Levaram o corpo para dentro da catedral. O povo também entrou. Ficamos a noite toda assim. Um calor, pois era muita gente. As pessoas chegavam perto da gente e diziam ‘Padrecito, la absolvisión!’, pois tinham medo de morrer. O taxista que me levou ao aeroporto foi assassinado quando voltava para a casa. Aquilo me marcou profundamente”. Quando partilhei com um outro seminarista que tinha viajado dias anteriores com ele, e que fazia seu trabalho final sobre a opção pelos pobres na Igreja da América Latina, ele me disse que Dom Luciano tinha contado a mesma história, da mesma forma, com os mesmos detalhes. Aquele acontecimento marcou de tal modo a vida de Dom Luciano, que o fez ainda mais comprometido com os pobres e a amá-los também até o fim.

Tendo amado os seus, amou-os até o fim. Jesus Cristo, tendo amado os seus, amou-os até o fim. Oscar Romero, tendo amado os seus, amou-os até o fim. Nesta ciranda da vida, cada um de nós é convidado a amar sem medida, até o fim. E você? Tem amado os seus? E tendo amado os seus, amou-os até o fim?

* Pároco da paróquia de São Sebastião em Ponte Nova – MG e assessor arquidiocesano de Pastoral da Juventude – Arquidiocese de Mariana

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